quinta-feira, abril 01, 2004

Eu praticamente só tenho ouvido críticas negativas a respeito do filme A Paixão de Cristo, do Mel Gibson (que tem gente chamando de A Paixão de Gibson). Há referências positivas às línguas faladas no filme, ao fato de não ser de fato um filme anti-semita e outras coisas assim, pontuais.

Eu, que ainda não vi o filme, publico abaixo um texto do meu crítico favorito (acima da Kael, cujas críticas também me agradam muito, desculpem).

"Há 15 anos, os católicos sentiram-se ultrajados com o Jesus humano de A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese. Agora, são os judeus que reclamam do anti-semitismo de Mel Gibson em A Paixão de Cristo. Os gays também acusam o diretor de homófobo - todo mal em seu filme, do próprio Diabo a Herodes, remete à androginia e ao homossexualismo. O mais curioso é que cada grupo faz seu protesto em separado. Se o objetivo de Gibson era provocar polêmica, ele conseguiu. A Paixão de Cristo estréia hoje nos cinemas brasileiros. Serão mais de 500 cópias, um megalançamento justificado pela discussão que o filme provoca e pelo estouro de bilheteria nos EUA. Você pode não gostar de A Paixão de Cristo. Gostar ou não gostar, é o de menos. O importante é não se subtrair à experiência rara que é ver este filme.

Os detratores vão dizer que o que impressiona é a sangueira. Nunca houve filme mais violento sobre Cristo. Nunca houve outro filme no qual a carne humana é tão flagelada. O Cristo de Mel Gibson é fatiado em cena. Quando o corpo é destruído desta maneira, só resta a elevação do espírito. Parece simples, mas não é - e, de tudo o que A Paixão de Cristo mostra, o que talvez permaneça em definitivo com o espectador seja o olho de Jesus. Gibson constrói sua Paixão num fascinante e, às vezes, agoniado jogo de olhares, mas, mais do que o olhar, o olho é o emblema do filme. Você pode não ter notado antes, mas Jim Caviezel, que faz o Cristo, tem um olho de boi. No filme, um olho é estourado no começo e fica só o outro - um olho de bicho levado ao matadouro, que revira nas órbitas e passa a agonia do animal ferido. E existem as conexões - o olhar de Maria, o de Maria Madalena, o de Judas, todos conectados com o do Cristo. Remetem a outro detalhe que só fica claro agora. A produtora de Mel Gibson chama-se Icon. O ícone que a representa é o olho de uma representação bíblica. O cinema como olho, o olho como testemunho.

Gibson fez da sua Paixão uma tragédia sofocliana. O tema do filme é o encobrimento e a descoberta da verdade do Criador. Pôncio Pilatos e a mulher - Cláudia - têm um diálogo revelador sobre a verdade. Discutem se a verdade pode ser reconhecida, e como. O Cristo de Gibson é a Verdade, mas quem a reconhece? Na primeira cena, no Jardim das Oliveiras, ele próprio duvida. É um Cristo que antecipa o sacrifício e desmorona.

Você pode achar que o filme é anti-semita, mas os guardas de Caifás não são menos brutais que os centuriões romanos. E há sempre um elo que se rompe na cadeia - o guarda cuja orelha decepada é recomposta no começo, o sacerdote que tenta deter Caifás, o soldado romano que crava a lança no peito do Cristo morto e é borrifado pelo sangue do Justo, convertendo-se, ali mesmo, sem a necessidade de uma palavra. O arrependimento é uma constante no filme. Caifás transmite no olhar o horror da consciência do que fez. Sua troca de olhares com Maria, quando ela o acusa silenciosamente, só com o olhar, é uma coisa muito forte. O templo que desmorona fornece ao sacerdote a suprema consciência desse mal que os homens exercem, por ambição ou o quê.

Talvez A Paixão de Cristo seja mesmo blasfemo. A principal acusação é contra o Pai - e a lágrima que ele verte, no desfecho, por mais brega que seja, vira um signo de arrependimento. Deus celebrou por meio do Filho sua aliança com os homens. Um Deus culpado não é a menor das perturbações que A Paixão de Cristo pode causar. Todos são muitos humanos - o Cristo, os discípulos que o negam, Caifás, Pilatos. Só o gay, aquele Herodes ridicularizado e cruel, não revela sua substância humana. Mel Gibson permanece homófobo. Tudo isso se presta à discussão, mas Gibson, como encenador, dá um salto imenso. A cena de Maria correndo para socorrer o menino Jesus que caiu se contrapõe à de Maria que vê o filho tombar, sob o peso da cruz. O menino ela conseguiu acarinhar. O Cordeiro de Deus não consegue tocar. E o que significa a insanidade de Maria e Maria Madalena tentando secar o sangue de Cristo, no pátio onde ele foi flagelado?

Gibson pediu a seu fotógrafo, Caleb Deschanel, que buscasse inspiração nas sombras de Caravaggio, mas realiza um percurso muito interessante. Caravaggio retratou o isolamento humano ante o destino e esse é o sentido da luz (e da sombra) no filme. De Caravaggio, Gibson e Deschanel fazem um arco para chegar ao expressionismo. O Cristo que inicia o calvário escancara a boca e lança um grito silencioso - como o do quadro de Edward Munch. E os soldados são sempre representações grotescas, como nos quadros de Bruegel. Tudo isso está no filme, para desgosto dos que acham que o durão da série Máquina Mortífera não tem estofo intelectual para pensar essas coisas. A verdade é que o ponto possivelmente mais interessante dessa polêmica está sendo minimizado. O Cristo antiespetacular de Mel Gibson traz uma linguagem de amor. Qual é a recompensa de amar os que nos amam? Difícil, e necessário, é amar os inimigos. A guerra, Pilatos faz sua reflexão em voz alta, só tem perdedores. A retórica é anti-Bush, total. O fato de o filme estar fazendo esse sucesso no mercado americano pode ser um sinal de saturação do poder que só cria tragédia e se volta contra os que o exercem."


Luiz Carlos Merten