segunda-feira, abril 19, 2004

Mas não se preocupe com isso; no final das contas, tanto faz. Não dá mesmo para todo mundo ser "melhor". Muita gente vei ter que ser mais ou menos mesmo, e alguns vão ter que ser piores que os outros mesmo, não? Não dá para todo mundo ser "melhor", dá? (ok, dá para ser melhor que hoje, que ontem. Mas dá para todos serem OS melhores? Pois é, não dá.)

Então, faço aqui a defesa da minha tese, pelo "Direito à Mediocridade". Quando não há uma escala fixa, para que você vá muito bem, alguém ter que se sair muito mal. Reconheça a importância dessas pessoas no seu sucesso.

Se você é mais um medíocre seguidor dos "mais inovadores gurus do marketing e da administração moderna", o meu mais sincero agradecimento.

"Com a competitividade atual do mercado de trabalho, você só tem chance se for o melhor."

Você certamente já leu a frase acima (ou outra parecida com essa, não importa. Elas são todas muito parecidas mesmo). Elas estão nos classificados de empregos e nas revistas para executivos. Estão nas conversas dos fetos engravatados nos cursinhos, das crianças idiotas engravatadas nas faculdades, dos idiotas profissionais engravatados, que repetem as bobagens dos jornais, das revistas, dos gurus das frases feitas, dos nomes atraentes para tratar de processos cotidianos melhorados ("Ei, e se o parafusador recebesse a porca antes de receber o parafuso!?" "Ótimo! Vamos chamar isso 'Just in order'. Escreva um artigo para a Exame." E o artigo é publicado. E o autor é o gênio administrador da próxima quinzena).

Pois então, esqueça a frase do início; é bobagem.

Vamos pensar numa profissão concorrida. Digamos, medicina. Ok, é um curso muito concorrido, mas há muitas faculdades que oferecem, há muitos médicos no mercado. Certo, vamos afunilar mais um pouco, pensemos apenas em clínicos gerais. Pois bem, são algo entre 40 e 50 mil, no país.Quantos se dão bem? 1, apenas? 10? Pense melhor, mesmo que eu dissesse que "apenas" 10.000 destes clínicos gerais se dão bem, por serem os mais atualizados, os que freqüentaram as melhores universidades, você não continuaria desconfiado de que os outros 30 ou 40 mil não estão de fato tããããão mal assim? Eu desconfiaria.

O mesmo vale para executivos. Ao ler estes gurus de recursos humanos, fica-se com a impressão de que apenas umas poucas centenas de executivos podem se dar bem no tal do competitivo mercado atual (e você TEM que ser um deles!). Não sei, mas não me parece que as outras centenas de milhares de executivos (para ficar só pela região da Av. Paulista) estejam se vendo com a corda em seus pescoços.

Estão muito ameaçados se não se diferenciarem da maioria os torneiros mecânicos, que são substituídos aos montes por tecnologia, e que anos de política cruel transformaram em massa bastante homogênea, substituível.

Executivos não precisam ser os melhores. Basta não ser um dos piores. E para não ser um dos piores, aconselho algum conhecimento além do seu próprio universo diário profissional, alguma preocupação além do seu job description (na minha opinião, quanto mais distante melhor) e o máximo de leitura não diretamente relacionada à sua área (em geral, as que mais vão fazer diferença são aquelas a respeito das quais você pensou "eu não vou precisar disso nunca!"). E, claro, acreditar menos em gurus de recursos humanos e administração.

quinta-feira, abril 15, 2004

A Zel estava me contando uma série de historinhas vividas por conhecidos dela, histórias sobre infrações e corrupções diversas, e uma me deixou particularmente encantado:

É sobre um cara que estava abrindo, fechando ou mantendo, sei lá, sua própria empresa. Foi ao departamento tal e perguntou ao funcionário como fazia determinado procedimento. O funcionário respondeu:

- Olha, você vai naquele cara ali e dá 100 reais pra ele que ele resolve rapidinho pra você.

- Não, mas eu quero fazer do jeito certo. Como é que eu faço?

- Aaaaah, mas do jeito certo eu não sei!

O cara bateu o pé, e não desistiu até fazer tudo do jeito certo. Levou uns 3 meses e uns 1000 reais.

(E veja bem, não acho que isso prova que funcionário público não presta, nem que isso prova que o governo é uma bosta, nem que todo político é corrupto, nem que esse mundo tá perdido, nem que a Caverna do Dragão era o inferno para onde foram as seis crianças que morreram. Isso só mostra que algumas pessoas, depois de muito tempo fazendo e vendo as coisas sendo feitas de maneira errada perdem a noção de qual era o jeito certo. E que a algumas pessoas faltam caráter e noção nas mínimas doses de subsistência)

quinta-feira, abril 01, 2004

Eu praticamente só tenho ouvido críticas negativas a respeito do filme A Paixão de Cristo, do Mel Gibson (que tem gente chamando de A Paixão de Gibson). Há referências positivas às línguas faladas no filme, ao fato de não ser de fato um filme anti-semita e outras coisas assim, pontuais.

Eu, que ainda não vi o filme, publico abaixo um texto do meu crítico favorito (acima da Kael, cujas críticas também me agradam muito, desculpem).

"Há 15 anos, os católicos sentiram-se ultrajados com o Jesus humano de A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese. Agora, são os judeus que reclamam do anti-semitismo de Mel Gibson em A Paixão de Cristo. Os gays também acusam o diretor de homófobo - todo mal em seu filme, do próprio Diabo a Herodes, remete à androginia e ao homossexualismo. O mais curioso é que cada grupo faz seu protesto em separado. Se o objetivo de Gibson era provocar polêmica, ele conseguiu. A Paixão de Cristo estréia hoje nos cinemas brasileiros. Serão mais de 500 cópias, um megalançamento justificado pela discussão que o filme provoca e pelo estouro de bilheteria nos EUA. Você pode não gostar de A Paixão de Cristo. Gostar ou não gostar, é o de menos. O importante é não se subtrair à experiência rara que é ver este filme.

Os detratores vão dizer que o que impressiona é a sangueira. Nunca houve filme mais violento sobre Cristo. Nunca houve outro filme no qual a carne humana é tão flagelada. O Cristo de Mel Gibson é fatiado em cena. Quando o corpo é destruído desta maneira, só resta a elevação do espírito. Parece simples, mas não é - e, de tudo o que A Paixão de Cristo mostra, o que talvez permaneça em definitivo com o espectador seja o olho de Jesus. Gibson constrói sua Paixão num fascinante e, às vezes, agoniado jogo de olhares, mas, mais do que o olhar, o olho é o emblema do filme. Você pode não ter notado antes, mas Jim Caviezel, que faz o Cristo, tem um olho de boi. No filme, um olho é estourado no começo e fica só o outro - um olho de bicho levado ao matadouro, que revira nas órbitas e passa a agonia do animal ferido. E existem as conexões - o olhar de Maria, o de Maria Madalena, o de Judas, todos conectados com o do Cristo. Remetem a outro detalhe que só fica claro agora. A produtora de Mel Gibson chama-se Icon. O ícone que a representa é o olho de uma representação bíblica. O cinema como olho, o olho como testemunho.

Gibson fez da sua Paixão uma tragédia sofocliana. O tema do filme é o encobrimento e a descoberta da verdade do Criador. Pôncio Pilatos e a mulher - Cláudia - têm um diálogo revelador sobre a verdade. Discutem se a verdade pode ser reconhecida, e como. O Cristo de Gibson é a Verdade, mas quem a reconhece? Na primeira cena, no Jardim das Oliveiras, ele próprio duvida. É um Cristo que antecipa o sacrifício e desmorona.

Você pode achar que o filme é anti-semita, mas os guardas de Caifás não são menos brutais que os centuriões romanos. E há sempre um elo que se rompe na cadeia - o guarda cuja orelha decepada é recomposta no começo, o sacerdote que tenta deter Caifás, o soldado romano que crava a lança no peito do Cristo morto e é borrifado pelo sangue do Justo, convertendo-se, ali mesmo, sem a necessidade de uma palavra. O arrependimento é uma constante no filme. Caifás transmite no olhar o horror da consciência do que fez. Sua troca de olhares com Maria, quando ela o acusa silenciosamente, só com o olhar, é uma coisa muito forte. O templo que desmorona fornece ao sacerdote a suprema consciência desse mal que os homens exercem, por ambição ou o quê.

Talvez A Paixão de Cristo seja mesmo blasfemo. A principal acusação é contra o Pai - e a lágrima que ele verte, no desfecho, por mais brega que seja, vira um signo de arrependimento. Deus celebrou por meio do Filho sua aliança com os homens. Um Deus culpado não é a menor das perturbações que A Paixão de Cristo pode causar. Todos são muitos humanos - o Cristo, os discípulos que o negam, Caifás, Pilatos. Só o gay, aquele Herodes ridicularizado e cruel, não revela sua substância humana. Mel Gibson permanece homófobo. Tudo isso se presta à discussão, mas Gibson, como encenador, dá um salto imenso. A cena de Maria correndo para socorrer o menino Jesus que caiu se contrapõe à de Maria que vê o filho tombar, sob o peso da cruz. O menino ela conseguiu acarinhar. O Cordeiro de Deus não consegue tocar. E o que significa a insanidade de Maria e Maria Madalena tentando secar o sangue de Cristo, no pátio onde ele foi flagelado?

Gibson pediu a seu fotógrafo, Caleb Deschanel, que buscasse inspiração nas sombras de Caravaggio, mas realiza um percurso muito interessante. Caravaggio retratou o isolamento humano ante o destino e esse é o sentido da luz (e da sombra) no filme. De Caravaggio, Gibson e Deschanel fazem um arco para chegar ao expressionismo. O Cristo que inicia o calvário escancara a boca e lança um grito silencioso - como o do quadro de Edward Munch. E os soldados são sempre representações grotescas, como nos quadros de Bruegel. Tudo isso está no filme, para desgosto dos que acham que o durão da série Máquina Mortífera não tem estofo intelectual para pensar essas coisas. A verdade é que o ponto possivelmente mais interessante dessa polêmica está sendo minimizado. O Cristo antiespetacular de Mel Gibson traz uma linguagem de amor. Qual é a recompensa de amar os que nos amam? Difícil, e necessário, é amar os inimigos. A guerra, Pilatos faz sua reflexão em voz alta, só tem perdedores. A retórica é anti-Bush, total. O fato de o filme estar fazendo esse sucesso no mercado americano pode ser um sinal de saturação do poder que só cria tragédia e se volta contra os que o exercem."


Luiz Carlos Merten